Análise – Once Upon a Katamari
Once Upon a Katamari marca o primeiro título totalmente inédito da série em quatorze anos. Desenvolvido pela RENGAME e publicado pela Bandai Namco, o jogo foi lançado em 24 de outubro de 2025 para PlayStation 5, Xbox Series X/S, Nintendo Switch e PC e trata-se do sétimo jogo principal da franquia Katamari Damacy, que retorna após um longo intervalo desde Katamari Forever (2009), encerrando o maior hiato de sua história.
Desde o lançamento original de Katamari Damacy no PlayStation 2, a saga tornou-se um cult, mais admirado por sua excentricidade conceitual do que por sua complexidade técnica. O novo episódio busca justamente resgatar esse espírito, expandindo mas sem romper a fórmula original. Desta vez, a destruição da Terra e das estrelas é causada por um descuido do Rei do Cosmos, que, ao brincar com um pergaminho cósmico que continha a história do mundo, acaba lançando-a ao espaço e provoca o colapso do universo. Cabe ao Príncipe viajar através do tempo a bordo da nave S.S. Prince para recuperar, em cada era, os fragmentos perdidos da criação.
O princípio permanece inalterado, com o jogador assumindo o papel do Príncipe do Cosmos, que fica encarregado de rolar o katamari, uma esfera adesiva capaz de agregar qualquer objeto menor que seu próprio tamanho, até atingir dimensões cada vez mais absurdas, em uma progressão física que parte de centímetros a montanhas, constituindo o núcleo lúdico da série e, de certa forma, único.
A premissa temporal lida com um conjunto de dez eras históricas, que vão do Japão feudal à Antiguidade grega, passando por períodos como a Idade do Gelo, o Egito Antigo e o Velho Oeste. A progressão dessas fases se organiza por meio de um mapa-tema, semelhante a um tabuleiro, em que cada ponto representa uma missão. O jogador libera novas eras à medida que coleta coroas escondidas, presentes e tokens do Rei. Entretanto, embora seja uma camada aparentemente expansiva, pode soar para muitos um acréscimo desnecessário de camadas e interfaces, que dilui o imediatismo do conceito original.
Keita Takahashi, criador da série, deixou a Bandai Namco alguns anos depois de supervisionar o primeiro We Love Katamari, e chegou a declarar que qualquer continuação contrariava a essência da ideia. Quando a empresa decidiu seguir adiante sem ele, Takahashi acabou se envolvendo apenas para evitar que a sequência se tornasse um relançamento vazio, repetindo o jogo original com nova camada estética, e esse o processo confirmou o que ele já intuía: a ideia de Katamari não comportava a lógica de franquia. Once Upon a Katamari, por consequência, nasce em um cenário de ausência autoral, como uma continuidade feita à revelia de sua própria origem. Ainda assim, a produção da RENGAME demonstra competência técnica e fidelidade estética, mantendo intacto o traço visual que mistura minimalismo geométrico e modelagem intencionalmente rudimentar, resultando em um título que conserva a identidade formal da série e que, ao mesmo tempo, explicita seus limites criativos, garantindo seu espaço entre os bons e divertidos jogos.
Cada uma das dez eras históricas são compostas por múltiplas fases com objetivos distintos, e o tempo é novamente o fator de restrição dominante, onde quase todas as missões impõem um limite de minutos para completar a tarefa. O jogador inicia em uma escala reduzida, rolando pequenos itens como lápis, moedas, peças de brinquedo, e, gradualmente, passa a absorver elementos maiores, como pessoas, casas, navios ou dinossauro, mantendo o mesmo ritmo dos episódios clássicos e preservando a maluquice e o prazer de observar o mundo ser progressivamente reconfigurado pela bola crescente.
A inovação está nas metas de fase e na própria ideia de progressão. São ao todo 248 itens escondidos: 141 coroas, 68 Primos e 39 presentes, espalhados pelos estágios. Cada estágio oferece até três missões secundárias, com classificação de desempenho que vai de D a S, substituindo a avaliação binária dos títulos anteriores por esse modelo graduado, que mede precisão, velocidade e eficiência. O jogo também introduz duas novas formas de colecionáveis: as Coroas e os King Tokens. As primeiras são itens ocultos espalhados pelos níveis e funcionam como chaves de desbloqueio para novas eras e fases; os segundos são concedidos ao completar estágios pela primeira vez, sendo usados para adquirir rostos e acessórios na função de personalização dos Primos. É uma repetição que pode soar desnecessária, especialmente porque a simples superação do objetivo da fase já bastaria para o avanço.
No campo da jogabilidade direta, o jogo oferece dois esquemas de controle. O “original” utiliza ambos os analógicos de forma simultânea, no estilo “tanque”, exigindo coordenação precisa entre empurrar e girar o katamari. Já o “simples” utiliza apenas um analógico para movimentação e o outro para ajuste de ângulo. A versão moderna também incorpora um botão dedicado ao impulso (dash), substituindo o antigo gesto de alternar freneticamente os analógicos, o que simplifica o movimento e evita fadiga manual.
O design de fases apresenta variações significativas entre eras e são baseadas em temáticas próprias. Na Grécia Antiga, o jogador precisa absorver filósofos como Sócrates e Platão, cujas citações surgem na tela após a coleta. No Japão Feudal, um garoto precisa engordar para vestir a armadura do pai, e a você deve recolher alimentos. No Velho Oeste, o foco é juntar pepitas de ouro. Há também missões-puzzle que pedem apenas um número limitado de objetos ou a seleção dos itens mais valiosos para obter maior pontuação. Alguns níveis são engenhosos e tematicamente inspirados, mas outros não. E certamente, para muitos, as fases mais livres, baseadas em tamanho e tempo, continuarão sendo as mais agradáveis, justamente por recuperarem o prazer bruto de rolar o mundo sem restrições adicionais.
Os itens temporários, Freebies, funcionam como power-ups de curta duração. Entre eles, temos um imã, que atrai objetos próximos; o relógio, que pausa o tempo; o radar, que sinaliza colecionáveis importantes; e o foguete, que aumenta a velocidade de rolagem. Itens armazenados no slot podem ser reutilizados em outras fases, mas a curta duração e o impacto limitado desses dispositivos reduzem seu potencial, transformando o que poderia ser um recurso estratégico em um mero complemento.
O título também introduz o modo competitivo KatamariBall, jogável online ou contra a CPU. Quatro jogadores competem para coletar e depositar objetos em uma base central, podendo engolir uns aos outros se alcançarem tamanho superior. A mecânica lembra arenas simplificadas e distraem, mesemo que o espírito da série seja mais contemplativo e cômico, não competitivo. Ainda assim, é uma boa adição.
O hub principal, a nave S.S. Prince, cumpre o papel de base de operações, onde se escolhem missões, se observam estatísticas e se personalizam personagens. É visualmente agradável e charmosa, mas também alonga o caminho entre o jogador e o ato de jogar. A interface, agora mais hierarquizada, adiciona uma camada de intermediação que a série nunca precisou. O excesso de tutoriais e o retorno dos discursos prolixos do Rei do Cosmos acentuam essa sensação, com o jogo explicando o tempo todo algo que sempre funcionou justamente por dispensar explicações.
Visualmente, Once Upon a Katamari mantém a fidelidade quase absoluta ao estilo que consagrou a série. É um jogo que não tenta parecer moderno, e acaba mandando bem ao não querer tentar. O traço poligonal simples e a ausência de texturas realistas continuam sendo parte essencial de sua identidade, garantindo o charme da série, que sempre esteve nessa aparência “errada”. O salto técnico é mínimo em relação às remasterizações recentes. Tudo parece reinterpretar a mesma fórmula em diferentes cores. É bonito dentro da sua proposta, é limpo, mas é o mesmo jogo de vinte anos atrás, apenas refeito com nitidez maior. E, como dito, isso é bom.
A nova organização dos menus e da nave S.S. Prince cumpre papel funcional, mas é excessivamente burocrática para esse tipo de jogo. Aquilo que era fluido, agora exige navegação entre telas, confirmações e tutoriais redundantes. Não há nada tecnicamente errado com essa estrutura, mas ela distancia o jogador daquilo que a série sempre soube fazer de modo instintivo, que era entregar movimento imediato, sem frescuras, parecendo que os produtores tiveram medo de assumir a própria simplicidade que a série jamais deveria perder, como se tentasse justificá-la com camadas de interface e explicação.
A trilha sonora continua sendo o elemento mais carismático da série, e Once Upon a Katamari não decepciona nesse ponto. A sonoridade segue o mesmo espírito de colagem musical dos títulos anteriores. Músicas como Kokon-Tozai Katamari-Doucyu e Eeja Eeja naika mantêm o humor da franquia.
Em termos de ambientação, há momentos em que o jogo atinge uma leveza estética difícil de explicar. Ver o katamari restaurando a vida em um deserto egípcio seco ou atravessando cidades noturnas iluminadas por néons é uma experiência quase catártica, fazendo-nos lembrar porque a série é tão querida.
O universo de Once Upon a Katamari continua a ser uma extensão da mesma lógica absurda que define a série desde o início. O Rei do Cosmos e o Príncipe voltam como representações do desequilíbrio cósmico e da obediência resignada. O Rei destrói a Terra acidentalmente e o Príncipe deve reconstruí-la rolando objetos através das eras, em uma sequência de eventos sem qualquer pretensão dramática e com o humor visual e exagerado que cativou os jogadores.
Apesar de a estrutura temporal oferecer variedade de cenários, Once Upon a Katamari não busca aprofundar nenhum deles, o que era esperado. O Japão do Período Edo, a Grécia Antiga, o Egito dos faraós ou o Velho Oeste americano são representações estilizadas, caricaturas temáticas que servem apenas de pano de fundo para o ato de rolar e essa superficialidade, como já dito, sempre fez parte da identidade da franquia, mas aqui se torna mais evidente porque o jogo tenta se justificar narrativamente. Só que acaba ficando raso.
Os Primos do Príncipe retornam em grande número. São onze novos personagens adicionados ao elenco: Asura, Cacta, Chamba, Charlie, Clay, Clip-Clop, Cosmi, Lucky, Perah, Tamago e Whaleson. O jogador também pode criar até dez personagens personalizados, combinando rostos, cores e nomes. Essa função de customização, embora simples, é uma das adições mais bacanas do jogo.
O jogo cumpre tudo o que promete em termos técnicos. É estável, acessível e visualmente fiel. Seu humor permanece intacto, e o ato de rolar o mundo ainda é prazeroso como sempre foi. O problema é o contexto. Quando o primeiro Katamari Damacy surgiu, a experiência era quase uma provocação ao próprio conceito de videogame. Hoje, essa provocação se tornou uma fórmula, deixando de ser subversivo e se tornando mais um produto que não tem a pretensão de subverter ou reinventar nada. O próprio excesso de sequências e remakes diluiu a força da série. De um lado, a nostalgia tenta preservar a pureza da ideia original, e de outro, a necessidade de justificar o próprio retorno. É um título que funciona, que diverte e que tenta respeitar a série, mas também confirma que talvez nada mais precise ser dito por ela. O encanto ainda está lá, mas já não é o mesmo tipo de encanto e, quando aceitamos nos entregar a essa nostalgia, somos atravessados pela burocratização dos seus menus, típicos de jogos modernos.
Não há demérito em repetir uma boa ideia, especialmente quando ela continua divertida. O novo Katamari tem momentos genuinamente criativos, como a fase dos filósofos gregos ou a sequência no deserto com o katamari encharcado. Essas passagens mostram que ainda existe imaginação dentro da estrutura, mesmo que confinada. Mas tudo parece seguro demais, controlado demais, como se o jogo tivesse medo de ser mais estranho do que já é.
O papel de Keita Takahashi, ausente desde os primeiros títulos, continua a pairar sobre a franquia como um limite. A tentativa de seguir sem ele nunca foi um problema técnico, e sim conceitual. O universo de Katamari nasceu de uma visão que misturava filosofia, absurdo e crítica cultural e reproduzir o formato sem essa camada reflexiva é o que torna o retorno bonito, mas um tanto vazio. Once Upon a Katamari entende o que é Katamari, mas talvez não entenda por que Katamari existia. Ainda assim, é difícil negar o prazer que o jogo proporciona. Há algo quase terapêutico em continuar rolando, em ver o caos se reorganizando sob o próprio movimento. É um tipo de beleza que sobrevive ao tempo, mesmo quando o tempo já não tem mais o que oferecer a ela. É um jogo agradável, bem feito e, em muitos momentos, encantador. Mas também é a prova de que nem toda obra precisa continuar existindo para permanecer viva.
No fim, o novo Katamari é um espelho de sua própria metáfora. O ato de juntar tudo o que sobrou para reconstruir um mundo que já foi destruído. O resultado é bonito, mas não novo. O universo se recompõe, mas as estrelas que ele tenta reacender já não brilham do mesmo modo. Ainda assim, é uma ótima experiência e uma bem-vinda dose de dopamina diária neste mundo engessado em que vivemos.
Nota: 9,0









