Análise – Sonic Racing: CrossWorlds – A resposta da SEGA ao domínio de Mario Kart
Sonic sempre teve uma relação ambígua com os jogos de corrida. Desde o pouco lembrado Sonic Drift, de 1994, até o cultuado Sonic & Sega All-Stars Racing Transformed, a franquia ensaiou diferentes formatos sem nunca ameaçar de fato o reinado de Mario Kart. Mas em 2025 a SEGA decidiu reposicionar seu mascote no gênero com a maior ambição já vista na série: Sonic Racing: CrossWorlds.
Desenvolvido pelo Sonic Team, com lançamento simultâneo em praticamente todas as plataformas, como PC, PS5, Xbox Series X|S, Nintendo Switch, Switch 2 e ainda PS4 e Xbox One, e já carregado de DLCs e crossovers anunciados, o título não só tenta mais uma vez competir com Mario Kart World, como assume, finalmente, a proposta de ser uma alternativa mais técnica, caótica e exigente. O resultado é um jogo cheio de ideias incrivelmente bem trabalhadas, mas também com derrapadas perceptíveis.
CrossWorlds trata-se de um lançamento multiplataforma e intergeracional pensado para vender muito, com edição Deluxe, passes de temporada e suporte pós-lançamento por pelo menos seis meses, incluindo crossovers confirmados com Minecraft, Bob Esponja e até as Tartarugas Ninja. De cara podemos perceber que a SEGA quer que ele se mantenha relevante no longo prazo. Além disso, é o primeiro Sonic Racing produzido internamente pelo Sonic Team, em vez de estúdios terceirizados como a Sumo Digital, agora focado em uma identidade mais agressiva e técnica, contrastando a acessibilidade que marcou Mario Kart World.
Em CrossWorlds, cada corrida conta com portais dimensionais que se abrem na segunda volta e o jogador em primeiro lugar escolhe entre dois mundos possíveis, levando todo o grid junto. Essa mecânica, inspirada tanto em conceitos narrativos recentes da franquia quanto em títulos como Ratchet & Clank: Rift Apart, redefine o ritmo das provas, fazendo com que a ideia de decorar atalhos ou memorizar pistas seja um processo nada fácil, visto que cada volta pode jogar os competidores em ambientes radicalmente diferentes, com novos obstáculos, rotas alternativas e mudanças no terreno que exigem adaptação constante. São 15 CrossWorlds no jogo base, e alguns portais funcionam de forma “glitchada”, transportando para mundos inesperados e aumentando bastante a sensação de surpresa. Lembrando que o líder é quem pode decidir o destino da corrida a partir da segunda volta, mas sua decisão está sempre limitada a duas opções.
A imprevisibilidade se amplia com os “frenesis”, estados especiais que às vezes acompanham o salto dimensional, trazendo variações como turbos infinitos, caixas de itens instáveis ou drifts mais potentes. Esses frenesis são aleatórios, mas calibrados para não quebrarem o equilíbrio. Ao contrário de Mario Kart, em que os itens são o principal fator de virada, aqui o próprio terreno e a velocidade alterada pelas dimensões são os fatores surpresa, aumentando e perpetuando a imprevisibilidade mesmo após dezenas de corridas, já que há mais de 20 combinações possíveis de portais, praticamente eliminando a sensação de repetição nas primeiras dezenas de horas de jogo.
O jogo se organiza em oito Grand Prix, cada um com três pistas inéditas e uma corrida final que remix a todas em um formato de volta única. No total, são 24 pistas convencionais e 15 CrossWorlds, somando 39 localidades. As ambientações passeiam por praticamente todo o repertório histórico do ouriço: de Green Hill a Radical Highway, passando por Apotos (Sonic Unleashed), Kronos Island (Frontiers), White Space (X Shadow Generations) e locais originais como Rainbow Garden ou Digital Circuit. A variedade visual é inegável, com cenários coloridos e criativos que exploram bem o Unreal Engine 5, ainda que algumas arenas careçam de identidade mais forte e soem genéricas em comparação com os clássicos revisitados. O salto entre mundos, apesar de eficaz no design, às vezes se apoia em fades para mascarar o carregamento, entregando menos impacto do que poderia.
Ainda assim, o conjunto impressiona, reforçado também por uma trilha sonora caprichada que combina músicas originais e rearranjos históricos, indo de Sonic R a Sonic Adventure 2. Há ainda um jukebox personalizável, que permite montar playlists próprias. São dezenas e mais dezenas de faixas no total incluindo arranjos de Sonic Mania, Sonic Colors, Sonic Unleashed, Sonic Heroes e até Sonic Frontiers, todas dividas em álbuns. O jogador pode criar sets inteiros para cada campeonato, personalizando essa experiência sonora. E, correndo na Prova de Tempo e cumprindo desafios (conquistando rank A), músicas adicionais são liberadas, podendo ser misturadas em playlists que ficam ativas em qualquer modo, transformando cada corrida em um verdadeiro metajogo de nostalgia para os fãs da franquia. O sistema ainda deixa configurar um álbum para cada volta de uma mesma corrida, porém não é possível definir músicas individuais por pista, apenas álbuns inteiros.
No controle, CrossWorlds posiciona-se de forma clara como o contraponto de Mario Kart World. Enquanto o rival apostou em pistas largas, regras permissivas e uma estrutura quase de mundo aberto, a SEGA preferiu estreitar os traçados, punir com severidade erros de direção e devolver protagonismo ao drift. A derrapagem acumula até três níveis de turbo e é determinante para manter velocidade competitiva. Perder o tempo certo do drift significa abrir espaço e comprometer toda a corrida. Isso se soma ao sistema de anéis, que substitui as moedas de Mario. Até 100 podem ser coletados, ampliando a velocidade máxima, mas também se perdem ao menor choque com rivais ou obstáculos, sendo sua gestão um fator essencial para se manter no pelotão da frente.
Quatro velocidades configuráveis (Normal, Alta, Sonic e Super Sonic) ajustam o desafio, sendo as últimas responsáveis por corridas de reflexos extremos, equivalentes a um “200cc turbinado”. Na velocidade Super Sonic, a intensidade beira o insano, entregando a sensação de um verdadeiro arcade nervoso e caótico. Nessa velocidade, curvas exigem preparo prévio e reação instantânea, transformando simples pistas em testes de reflexos de nível competitivo, mas esse modo só é desbloqueado após vencer todos os Grand Prix em ouro. Além disso, a dificuldade pode ser ajustada em dez níveis.
Diferente dos títulos anteriores, personagens e veículos não estão atrelados de forma fixa. Qualquer piloto pode dirigir qualquer carro, dentro de cinco classes principais chamadas Velocidade, Aceleração, Potência, Pilotagem e Turbo. Peças dianteiras, traseiras e rodas podem ser trocadas livremente, afetando estatísticas, e ainda é possível pintar, aplicar decalques de marcas conhecidas (inclusive uma delas é o mascote da V-Jump, feito por Akira Toriyama) e trocar buzinas. O “sistema monetário” do jogo gira em torno dos Donpa Tickets, adquiridos em corridas e desafios, usados para desbloquear peças e customizações. Embora generosos no início, eles rapidamente se tornam escassos diante da grande quantidade de desbloqueáveis, forçando um grinding que alguns jogadores podem achar cansativo, principalmente para quem almeja platinar ou liberar todo o conteúdo. Ainda assim, o sistema recompensa a experimentação, com combinações que realmente impactam no desempenho. Existem centenas de combinações possíveis entre carrocerias, rodas e traseiras, e cada parte carrega microatributos como peso, tração, aceleração inicial e recuperação em batidas que, somados, geram diferenças reais. O sistema também permite salvar até sete builds distintas para alternar entre corridas, algo essencial no online competitivo, onde um carro leve pode ser ideal para pistas técnicas e um carro pesado com turbo é melhor em circuitos de retas largas. Até mesmo buzinas e cores podem ser compradas, e fazem parte da lista de troféus e conquistas, incentivando o grinding.
O sucesso para dominar o jogo, no entanto, está nos gadgets. Mais de 70 melhorias passivas ou ativas podem ser equipadas em até seis slots, ampliáveis conforme a progressão. Eles modificam desde a retenção de anéis até o carregamento do boost de drift, podendo até transformar completamente um estilo de jogo: há gadgets que evitam perder itens em colisões, que turbinam armas específicas ou que oferecem vantagens situacionais em pistas com muitas curvas. Para competições online, torna-se impossível prever com exatidão a configuração do adversário. Exemplos incluem gadgets que fazem o jogador começar cada corrida já com um item de boost carregado, outros que permitem carregar até três itens simultaneamente, um que aumenta a chance de receber armas ofensivas quando se está em posições intermediárias, e até mesmo habilidades raras que afetam diretamente o rival, como aumentar o tempo de stun após um impacto. Alguns ocupam apenas um espaço, enquanto outros consomem até três slots, forçando escolhas de especialização, parecendo até um sistema de builds de um RPG simplificado dentro de um jogo de corrida. Em modos competitivos rankeados, certos gadgets ficam bloqueados para não desequilibrar demais, mas em partidas amistosas ou locais tudo é liberado, ampliando o potencial de caos.
O elenco de personagens é o maior da série: 23 corredores base, incluindo veteranos como Sonic, Tails, Knuckles, Shadow e Eggman, além de figuras mais recentes como Sage (Frontiers), Jet (Riders) e Omega (Heroes). Versões alternativas e convidados especiais expandem a lista, com participações que vão de Pac-Man e Bob Esponja a personagens de Minecraft, além de ícones da própria SEGA e Atlus como Joker (Persona 5), Kasuga (Yakuza: Like a Dragon) e Hatsune Miku.
Cada corredor pertence a uma das cinco categorias de classe: Velocidade, Aceleração, Força, Pilotagem e Turbo. Mas o jogo permite quebrar essa lógica ao associar qualquer personagem a qualquer veículo, criando combinações inusitadas e abrindo margem para situações como Sonic pilotando veículos pesados de Força ou Eggman em máquinas leves de alta Aceleração, setups pouco usuais que realmente impactam na jogabilidade. Existem também versões alternativas de personagens principais desbloqueáveis, como Super Sonic ou variações visuais de Shadow, além de crossovers externos que chegam tanto via eventos gratuitos quanto pelo passe de temporada premium.
Todo esse ecossistema demonstra o quanto que a SEGA realmente tem a intenção de manter CrossWorlds vivo como serviço, com eventos mensais e festivais temáticos que adicionam novos corredores, decalques e até veículos exclusivos. Parte desse conteúdo é gratuito, mas skins, pistas e carros mais elaborados ficam bloqueados em passes de temporada pagos, o que talvez seja visto por muitos como um modelo de monetização predatório que pode futuramente levar o jogo ao total desequilíbrio e ao desinteresse da comunidade. Mas ainda é cedo prever isso.
Alguns pilotos contam com pequenas interações narrativas. Rivais históricos como Sonic e Shadow, ou Eggman e Omega, trocam provocações em corridas de Grand Prix, sendo um bom fan service, embora essas cutscenes sejam simples e o modo história não ser lá um grande ponto desse jogo.
Nos modos, seu foco é obviamente no Grand Prix, mas não se limita a ele. Há também o Parque de Corrida, um hub de modalidades alternativas em que equipes competem por anéis, usam apenas superitens ou tentam maximizar o boost coletivo. É nesse modo que novos veículos podem ser desbloqueados ao derrotar equipes rivais. O Parque de Corrida contém seis variações principais: corridas em times para coletar anéis, provas centradas apenas em superobjetos, modos de impacto onde vencer exige atingir adversários com itens, e desafios de velocidade coletiva em que os boosts individuais alimentam uma barra comum da equipe. Esse hub pode ser jogado solo contra a IA ou em multiplayer, tanto local quanto online, suportando até 12 jogadores simultâneos.
A Prova de Tempo mantém relevância, com 78 medalhas possíveis e desbloqueio de músicas adicionais para o jukebox. Há ainda partidas amistosas customizáveis e o modo online competitivo, que se mostrou estável, com matchmaking rápido e progressão baseada em rankings e títulos desbloqueáveis.
Existe também um sistema de rivais, onde, a cada Grand Prix, um personagem assume papel de antagonista e persegue o jogador com dificuldade escalável. Vencer todos os 23 rivais libera um corredor secreto, funcionando como um meta-desafio dentro do próprio campeonato (que tem toda sua importância), já que cada rival possui falas e comportamentos que adicionam mais personalidade às disputas.
O online competitivo também se destaca pelo sistema de rankings progressivos e pelas recompensas em Donpa Tickets e títulos de perfil, que funcionam como insígnias exibidas no lobby. O crossplay entre todas as plataformas está ativo desde o lançamento, permitindo que jogadores de PC, consoles antigos (PS4/Xbox One) e novos (PS5/Series/Switch 2) compartilhem as mesmas corridas. A Prova de Tempo, além de oferecer fantasmas de rivais mundiais, também integra desafios semanais que alimentam os eventos temáticos anunciados para o suporte pós-lançamento. Apesar da variedade, a ausência de um verdadeiro modo história ou campanha mais elaborada deixa a sensação de que o conteúdo é fragmentado entre hubs e menus, especialmente quando comparado ao enredo que Team Sonic Racing tentou implementar em 2019.
CrossWorlds, apesar de sólido, não é irrepreensível. O uso de Unreal Engine 5 garante iluminação convincente, pistas detalhadas e performance consistente, inclusive nas versões de PS4 e Switch, e o título oferece modos de resolução e performance nas plataformas atuais. Mas as transições dimensionais, ainda que visualmente impactantes, não escondem totalmente suas limitações, e a sobrecarga de efeitos visuais pode tornar algumas corridas bem confusas.
As versões de PS5, Xbox Series e PC rodam a 60fps estáveis, enquanto no Switch 2 há um modo de desempenho que preserva fluidez mesmo com quedas ocasionais em CrossWorlds mais carregados. Já as versões de PS4 e do Switch original entregam 30fps travados, ainda jogáveis e com menos impacto visual. As pistas aproveitam bastante a iluminação dinâmica, especialmente em cenários como White Space ou Digital Circuit, mas certas arenas originais parecem genéricas, em contraste com clássicos revisitados como Radical Highway ou Apotos. O efeito de salto dimensional, que deveria ser instantâneo, em alguns casos é mascarado por fades, reduzindo a grande sacada que é essa mecânica. Ainda assim, o espetáculo visual impressiona quando portais lançam os jogadores de cassinos cheios de neon para ilhas tropicais ou navios fantasmas.
O design de armas é variado, com serras, luvas teleguiadas, caminhões-monstro e até shurikens , mas alguns itens soam deslocados ou pouco inspirados, repetindo problemas de Team Sonic Racing. A ausência de personalidade em certas armas e na expressividade dos pilotos podem prejudicar um pouco a imersão. E apesar da força da trilha, os efeitos de itens e colisões podem soar menos expressivos do que os de Mario Kart. Já os menus são confusos, pouco ergonômicos e com estética inconsistente, destoando do cuidado visto nas pistas e personagens.
No fim, Sonic Racing: CrossWorlds está muito longe de ser só mais um spin-off qualquer do ouriço. É a resposta da SEGA a décadas de comparações com Mario Kart, não apenas como um clone que o imita, mas um clone que tenta ser o diferentão. Mas ao priorizar velocidade extrema, drifts punitivos, uma impressionante imprevisibilidade dimensional e uma personalização profunda, o jogo oferece uma alternativa legítima e competitiva no gênero. Além disso, sua amplitude de conteúdo, seu elenco variado, e seus modos online sólidos, além de um suporte pós-lançamento que promete durar bastente, o colocam em uma posição inédita na história da série, deixando justamente de ser aquele derivado simpático, e sim um concorrente real no pódio dos jogos de kart.
Nem mesmo o grinding excessivo, alguns mapas e armas sem identidade marcante, menus confusos e a ausência de um modo história apagam o mérito de ser a entrega mais ambiciosa, divertida e tecnicamente exigente da saga. CrossWorlds finalmente coloca o ouriço azul em pé de igualdade, e em certos aspectos acima, do rival bigodudo, trazendo caos, velocidade e uma maturidade de design, podendo assim muito bem ser lembrado como o ponto de virada da série Sonic Racing. O saldo final é o de um jogo que, mesmo com pequenas derrapadas, marca a primeira vez em que um título da série Sonic Racing é visto como rival real de Mario Kart.