Silent Hill f – Análise

Análise – Silent Hill f

Silent Hill f marca o primeiro grande título inédito da série desde Silent Hill: Downpour (2012), último jogo completo lançado comercialmente antes da dissolução definitiva da Team Silent e do longo período de estagnação criativa da franquia. Embora The Short Message (2024) tenha servido como uma experiência experimental gratuita e de transição, é Silent Hill f que realmente retoma o espírito da série em escala plena, com narrativa, ambientação e proposta autoral próprias. Depois de anos de tentativas fracassadas de reinterpretação da franquia, o projeto representa um ponto de virada real dentro da estratégia da Konami. Desenvolvido pelo estúdio taiwanês NeoBards Entertainment, com produção supervisionada pela própria Konami, o jogo é o segundo a estabelecer uma narrativa original totalmente desvinculada da cidade titular e de personagens relacionados (o primeiro seria Silent Hill: The Short Message, de 2024) e o primeiro totalmente concebido no Unreal Engine 5.

O retorno ocorre em um contexto de reconstrução da marca, onde o sucesso comercial e técnico do Silent Hill 2 Remake, lançado no ano anterior pela Bloober Team, havia restabelecido o interesse na série, mas ainda não havia demonstrado se a Konami conseguiria sustentar um novo ciclo de obras inéditas. Silent Hill f assume exatamente essa função, servindo como um reinício conceitual da franquia, mantendo o núcleo psicológico da franquia, mas explorando uma cultura e um imaginário bem distintos dos jogos anteriores.

A decisão de ambientar o jogo no Japão dos anos 1960, em plena era Shouwa, representa uma substituição deliberada da decadência industrial americana pelo colapso moral e social de um Japão rural em transição, ainda preso a rituais e estruturas patriarcais. Essa mudança geográfica acabou ampliando o campo de leitura da série, estacionando um pouco aquela gana de explorar uma cidade física e sobrenatural, e valorizando mais o espaço mental do trauma, que é o que deveria ser mais valorizado pelos próprios fãs da franquia, já que o terror psicológico sempre foi o ponto central e mais interessante da série. Ao trocar a cidade maldita por um cenário rural e culturalmente específico, Silent Hill f concretiza a intenção do produtor Okamoto de fazer com que a franquia deixasse de ser associada a um local e passasse a representar o próprio gênero do terror psicológico. Inclusive, Jacob Navok, que trabalhou com ele em Silent Hill: Ascension, explicou que expandir a série exigia romper com a dependência do cenário original, assim como Resident Evil (Biohazard, no Japão) precisou ultrapassar Raccoon City para continuar evoluindo.

Com direção narrativa de Ryukishi07 (Higurashi no Naku Koro ni, Umineko), a produção então assume esse tom mais explícito de horror psicológico contemporâneo, sem abandonar os elementos tradicionais de decadência material e distorção perceptiva. À época, a Konami descreveu o projeto com a frase “find the beauty in horror” (encontrar beleza no horror) e o resultado inicial, desde os trailers até o produto final, demonstra que Silent Hill f realmente não fez a mínima questão de reproduzir a estrutura dos episódios clássicos, mas sim a de estabelecer uma nova base, fazendo com que a mudança de cenário e a cultura não rompesse a continuidade da série, diferente do que os fãs obcecados pelo endeusado segundo jogo da franquia insistem em dizer por aí.

A história de Silent Hill f se passa na fictícia Ebisugaoka, uma pequena cidade mineradora nas montanhas japonesas, isolada pelo declínio econômico e pela persistência de tradições xintoístas. O contexto é o Japão rural da década de 1960, período de reconstrução pós-guerra marcado pelo contraste entre modernização e conservadorismo. Nesse ambiente, o enredo acompanha Hinako Shimizu, estudante do ensino médio que vive sob um lar abusivo, dominado por um pai violento e uma mãe submissa. A irmã mais velha, Junko, já casada, representa o destino imposto às mulheres da época, e sua ausência reforça o sentimento de aprisionamento de Hinako. A cidade é marcada por rituais de adoração à divindade-raposa Inari, presente em altares e santuários que pontuam o cenário.

A história começa após uma briga doméstica. Hinako foge de casa e se encontra com seus amigos Shu, Rinko e Sakuko, que vivem suas próprias tensões e rivalidades. Após o grupo ingerir estranhas cápsulas vermelhas dadas por Shu, uma névoa densa cobre Ebisugaoka, acompanhada pelo surgimento de criaturas deformadas e flores de lírio-vermelho que se espalham pela cidade. A partir desse ponto, o jogo alterna entre a realidade e uma dimensão paralela chamada Santuário Negro, um espaço ritualístico onde Hinako é guiada por uma entidade com uma máscara de raposa. A relação entre Hinako e o mascarado estrutura boa parte da narrativa, pois ele orienta e manipula a protagonista em rituais que a transformam, literalmente.

A estrutura narrativa adota um modelo de múltiplos finais, acessíveis por meio de novas jogadas, algo que, felizmente, a equipe fez questão de manter em respeito à tradição dos principais jogos. Ebisugaoka funciona como um espelho psicológico: as casas abandonadas, os santuários cobertos de mofo e os rios contaminados compõem uma paisagem em decomposição física e moral. A ambientação traduz a repressão familiar, a culpa e o medo de amadurecer, elementos que ganharam forma e respeito no trabalho primoroso da NeoBards Entertainment. A fotografia e a iluminação reforçam essa leitura, com o contraste entre o vermelho orgânico das flores e o cinza do concreto, criando uma estética de contaminação entre o belo e o grotesco, que coexistem na mesma superfície e funcionam tão bem quanto a mistura de ferrugem e sangue dos cenários macabros dos jogos anteriores.

A alternância entre os dois planos mantém o ritmo da história, tal como sempre foi com a série, e as transições são marcadas por quedas de consciência ou momentos de exaustão, e cada retorno altera ligeiramente a realidade, incorporando eventos anteriores como se o espaço se moldasse à memória da protagonista,  substituindo o tradicional “Outro Mundo” da série por uma versão mais ritualística, e de forte influência folclórica, mas que executa o mesmíssimo resultado esperado dos melhores jogos da série.

No geral, o enredo de Silent Hill f preserva o tema clássico da franquia, mas o adapta a um contexto social específico, em que repressão de gênero, superstição e trauma familiar se sobrepõem como partes de um mesmo sistema. Diferente dos jogos clássicos, que concentravam o horror nos dilemas pessoais dos protagonistas e pouco marcavam o tempo e o ambiente social em que se inseriam, o terror de Silent Hill f é moldado pela própria estrutura da sociedade japonesa dos anos 1960, o que dá à narrativa um peso muito maior do que simplesmente ambientá-la em uma cidade ocidental enevoada, já que o foco não está só nas angústias individuais, mas principalmente nas condições sociais que as originam e perpetuam.

Silent Hill f adota uma estrutura com áreas interconectadas e progressão linear “disfarçada” por rotas alternativas. Há tudo aquilo que se quer em um Silent Hill: exploração, combate, puzzles malucos, com cada segmento delimitado por eventos narrativos, e com justos retornos às áreas anteriores, quando novos documentos e variações de inimigos são introduzidos.

O combate é, sem dúvida, o ponto de maior transformação da série e também o mais cercado de polêmicas, que, sinceramente, foram e são desnecessárias. Historicamente, a franquia sempre tratou o confronto físico como um incômodo funcional, restrito a armas improvisadas e a uma movimentação lenta e desengonçada. Todo fã sabe que nenhum Silent Hill antigo tinha um combate realmente agradável, todos eram, no mínimo, desastrosos. Em Silent Hill f, essa lógica muda completamente. O sistema de combate assume papel central, adotando uma estrutura próxima de um soulslike simplificado, com ataques leves e pesados, parries, esquivas e um sistema de equilíbrio invisível (poise), que define se haverá resistência a um golpe ou se haverá interrupção no meio de uma ação. Hinako pode executar ataques rápidos com armas curtas, como facas, bastões e ferramentas domésticas, ou movimentos mais lentos e poderosos com lanças e foices obtidas no Santuário Negro.

O sistema de parry é uma das novidades mais relevantes e bem vindas à série. Acionado com precisão de tempo, ele gera uma abertura curta para um contra-ataque, aumentando o dano e restaurando parte da sanidade da protagonista. Falhas reduzem a barra de estâmina e a deixam vulnerável a agarrões. Já o medidor de sanidade substitui a ideia de barra de medo ou de pânico de outros jogos. Cada vez que Hinako utiliza ataques de foco, o tempo desacelera, causando desgaste mental, e quando a sanidade chega ao limite, a visão distorce, o som ambiente muda e os comandos perdem responsividade, criando tensão sem recorrer a “jump scares” abobalhados.

Há também uma barra de estâmina, bastante restritiva. Correr, esquivar e atacar consomem vigor de forma interdependente, obrigando o jogador a priorizar defesa ou ataque, algo que em áreas confinadas torna-se essencial seu gerenciamento, já que o alcance das armas longas é limitado por colisão física com o cenário e favorecendo o combate corpo a corpo.

A destruição das armas retorna e nem todo mundo é obrigado a gostar disso. Cada ferramenta possui durabilidade própria e se parte após uso excessivo, forçando o improviso. Aqui faltou variedade, sinceramente. Há também um sistema de amuletos Omamori, itens espirituais que concedem bônus passivos como aumento de vida, resistência ou recuperação de sanidade durante esquivas bem-sucedidas. Eles são obtidos em santuários, que funcionam como checkpoints e pontos de troca de recursos espirituais. É basicamente o “dinheiro da série”, outro elemento inédito na franquia, e pode ser gasto em melhorias permanentes de vitalidade, sanidade e estâmina.

O gerenciamento de inventário é restrito a poucos slots, e os recursos de cura e foco são escassos, porém a dificuldade padrão não é um grande problema. Enfrentar grupos de inimigos simultaneamente consome mais que o esperado, mas o jogador realmente só terá mais problemas se optar em jogar no modo mais difícil.

Os inimigos possuem padrões específicos de movimento e comportamento, com destaque para o Kashimashi, uma marionete montada com fragmentos de corpos femininos, e o Oi-omoi, uma estrutura feita de bonecas hina que se move aos saltos. Ambos seguem princípios distintos, onde o primeiro torra sua paciência e o timing de parry, enquanto o segundo atua como um perseguidor imprevisível, lembrando o conceito do Nemesis. Apesar disso, a variedade é um ponto fraco, um problema que lamentavelmente assola todos os jogos da franquia, mas o design dos confrontos sustenta o interesse até o final.

Os puzzles mantêm a tradição da série. Há três níveis de dificuldade, que alteram, além da quantidade de passos, a clareza das pistas. Nos níveis mais altos, as instruções são deliberadamente vagas e os elementos do ambiente exigem inferência lógica. Chaves, mecanismos e inscrições se integram à arquitetura, e não aparecem isolados e o jogo utiliza o inventário físico (anotações, fotos, diários) como interface narrativa, ajudando a entender o enredo, assim como sempre foi em jogos do gênero.

O ciclo NG+ dá gás ao fator replay, onde cada nova partida introduz novos arquivos, novos documentos e variações de cenas, além de diálogos adicionais e cutscenes alternativas que ampliam o entendimento dos eventos, e também a inserção de novos amuletos e habilidades desbloqueáveis. No conjunto, Silent Hill f combina um excelente combate físico a já manjada gestão de recursos e puzzles tradicionais em uma estrutura coerente e disciplinada, fazendo muito bem seu dever de casa.

Silent Hill f é o primeiro título original da série a ser desenvolvido integralmente no Unreal Engine 5, e isso se reflete em todos os aspectos de sua execução técnica. A cidade de Ebisugaoka é composta por áreas de médio porte, com alto nível de detalhamento e carregamento dinâmico invisível, sem telas de loading convencionais, apenas breves transições disfarçadas por travessias e cortes de câmera.

O destaque da direção de arte é o contraste e o uso recorrente do vermelho, especialmente nas flores parasitas que se espalham pela cidade, criando uma identidade cromática marcante entre algo biológico e o ritualístico, o que dá ao jogo uma assinatura estética distinta dentro da própria franquia, mas que consegue ser enxergado como tal. A ambientação utiliza fotogrametria e captura volumétrica para recriar o Japão rural da década de 1960. As ruas estreitas, postes enferrujados, casas de madeira e cabos suspensos são muito bem modelados, enquanto o “Outro Mundo” (Santuário Negro) adota superfícies instáveis, com corredores curvos e templos distorcidos.

O design de criaturas, supervisionado pelo artista japonês Kera, incorpora influências diretas do movimento ero-guro (erótico-grotesco). As formas humanas distorcidas, fundidas a tecidos florais, sugerem uma ideia de metamorfose e contaminação e, como esperado de todo bom jogo da franquia Silent Hill, cada inimigo reflete simbolicamente um trauma de Hinako, como a repressão sexual, o medo do envelhecimento ou a culpa filial, retomando com louvor a lógica psicológica presente desde os primeiros Silent Hill, principalmente o segundo. As animações usam captura de movimento híbrida com correções manuais, resultando em movimentos espasmódicos e imprevisíveis, gerando muito desconforto ao jogador.

No PlayStation 5 (modo Performance), o jogo mantém 60 fps constantes em 1440p dinâmico, com quedas raras em áreas externas de maior densidade. O modo Qualidade alterna entre 4K e 40 fps, priorizando sombras e reflexos mais densos. A otimização é notavelmente superior à média de produções recentes em Unreal 5. No Xbox Series X, o jogo está no mesmo primor que o console concorrente, porém no Series S o jogo tem muitas quedas e é o que entrega o pior desempenho.

A direção sonora, liderada por Akira Yamaoka e Kensuke Inage, cumpre bem seu papel sem abandonar por completo a estrutura melódica tradicional da franquia. Há, inclusive, uma bela referência à clássica música do primeiro jogo e fica a sugestão para que os fãs a localizem e se divirtam com o gracioso easter egg.

O design de som 3D também cumpre seu papel, especialmente em um jogo de terror, ao valorizar os passos abafados por tatames, a vibração de insetos e os estalos de madeira velha. O jogo conta com vozes em japonês e inglês e apresentam uma dublagem completa com sincronização labial fiel, sem descompasso perceptível.

A câmera mantém enquadramentos fixos ou semimóveis durante diálogos e cutscenes, com composição inspirada no cinema japonês dos anos 1960, especialmente em diretores como Masaki Kobayashi e Kaneto Shindou. Os planos longos e o uso de profundidade de campo dão uma verdadeira aula de voyeurismo e desconforto. Visualmente, Silent Hill f é um jogo que apostou todas as suas fichas na consistência artística, do que em pirotecnia barata, sem efeitos de partículas excessivos nem iluminação artificial exagerada.

Silent Hill f marca o retorno mais consistente da franquia desde a era do Team Silent. A NeoBards entrega um projeto consciente de suas limitações e, ao mesmo tempo, ambicioso o suficiente para reposicionar a série dentro do gênero de horror contemporâneo, sendo um título com uma identidade sólida, uma direção autoral clara e que conseguiu esbanjar domínio técnico sobre os próprios sistemas, ainda que alguns fãs mais conservadores rejeitem.

Com um sistema de combate pesado, calculado e até coerente com o esperado da protagonista, além da inclusão de parries e de um inédito gerenciamento de sanidade, Silent Hill f confere um senso de controle tenso, substituindo o medo passivo por um terror mecânico. É um jogo que entrega um horror psicológico consistente, que não se apega a uma nostalgia barata de jogadores ultraconservadores dos anos 90 e 2000. A NeoBards compreendeu muito bem que o que fez da série relevante nunca foi o nome da cidade, mas o mecanismo de espelhamento entre o jogador e o trauma. E, ao deslocar o cenário para o Japão, o estúdio reafirma isso, mostrando que o verdadeiro “Silent Hill” é o estado mental colapsado de seus personagens. Se Silent Hill 2 Remake foi um tributo técnico, Silent Hill f é a prova de que a série ainda pode se expandir infinitamente, sem perder sua verdadeira essência, tão incompreendida por muitos.

Nota: 10

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